Amigo
Tudo começou quando eu perdi meu melhor amigo. Perdi mesmo pros braços da morte; mas não me disseram. Eu o visitava em sua casa e, perguntando por ele, sua esposa me dizia: "Ele está no quarto, dormindo um pouco". Então eu ia até o quarto para ver meu amigo; ele não estava lá. Pensando que talvez fosse loucura de um de nós dois eu dizia que não havia ninguém e ela, contrariada, dizia que sim; ou talvez dissesse que já tinha saído à rua. Eu já não me lembro.
Esse evento se repetiu inúmeras vezes até que, certo dia, eu peguei na mão dela e a arrastei até o quarto. Chegando lá, vendo os lençóis arrumados e a cama lisa como a dos hotéis, sem sinal de uso recente e sem nenhuma marca de peso por cima - descartando assim a possibilidade do meu amigo ter adquirido alguma forma de invisibilidade que só os sinais da gravidade o pudessem denunciar - deitei sua mão direita no colchão. Com a minha mão por cima - para guiar o movimento - eu arrastei sua mão por todo o comprimento do colchão com uma expressão de profunda irritação e disse "Está vendo? Ele não está aqui!". Ela não tinha respostas para aquela estrutura de evidências que se formava com o peso retórico de um avião diante dos seus olhos e perante o toque de suas mãos; aquilo era forte demais para contrariar. Pelo que eu me lembro, ela não disse uma palavra.
Não sei quando foi que eu me dei conta de que ele havia falecido, ou talvez nunca me tenha caído a ficha. Essa é a parte mais difícil pra mim. Como eu posso não ter entendido aquele momento? Ou melhor, isso compreende-se; mas qual foi o fim que eu dei a essa investigação do seu paradeiro? Não sei se tive raiva, se fiquei triste; mas sei que tive medo. Medo e frustração. Fato é que eu nunca mais o vi. Éramos como o arroz e o feijão, a unha e a carne, o corpo e o sangue, todos podem confirmar; e agora aquele que era o meu mais querido amigo havia me abandonado. Me pergunto até que ponto foram os meus questionamentos e as minhas aflições. Tanto no tempo quanto no espaço.
Eu me imagino inconsolável. Mas a parte mais desesperadora e mais triste é que eu não me lembro. Tanto não me lembro que tudo o que foi contado aqui como fato foi antes contado a mim por outras pessoas. Eu não me lembro do falecimento do meu melhor amigo. Ao que parece, tudo o que ficou foi o abandono e o medo.
A única coisa que eu me lembro foi o que o neto desse meu amigo me disse tempos depois, foi o que me ajudou. Ele dizia "Tudo vai acabar bem. Se não está bem, é porque não acabou". Afinal, eu tinha 3 anos. E a vida do meu melhor amigo, meu bisavô, tinha chegado ao fim. Portanto, tudo estava bem.

