Roubo
As vezes eu sinto que alguém me destruiu, me violou, me destroçou, me estraçalhou, me humilhou e - depois de tudo - me roubou. Me roubou da Minha capacidade de me surpreender com o mundo, de admirá-lo através dos meus próprios olhos e não pelo olhar externo, o olhar do Outro. Talvez tenha sido mais um furto, um plano orquestrado por alguém que diariamente movia minha mesa um centímetro mais longe da cama; e, de um em um centímetro e sem perceber, fui parar na cozinha. Depois no corredor. Depois no banheiro. A água estava ligada e o vapor subia das torneiras até o teto. A água transbordava da pia e do box onde os ralos foram entupindo pelos fios de cabelo atados em pequenos e grandes nós da minha própria juba malcuidada. É estranho não perceber esse tipo de mudança, mas a realidade diária por vezes é auto-centrada demais para perceber o ambiente, é feito um zoom na experiência imediata.
E também há um certo prazer de alguma ordem, um gozo. O banheiro é quentinho e água é quentinha assim como o metal das torneiras, são como quando se entra numa sauna. A água que sobe pelo chão também demora a se ocupar do volume do local; são muitos litros para se afogar num banheiro. Ou numa casa. É algo que se acumula quase sem tensão, até chegar ao ápice.
No ápice, os cabelos são um só nó; como um carpete que rodeia toda parte da cabeça e agora também o chão. E a água. A água que já não permite respirar e o calor que só faz cauterizar os sonhos e queimar o corpo. É uma prisão. É a imobilidade de quem não se permite falhar nem experimentar, de quem só experimenta o gozo alheio. E o mundo visto do alheio. E o gozo da sua estagnação.
É agora que o desespero te faz tentar se mover, mas te falta a compreensão do que aconteceu e do que fazer, te falta a vontade, o espírito, já não há mais nada ali que seja propriamente seu. Além dos fracassos, claro. Os próprios cabelos, a água, o calor, o banheiro. Desses, temos aqui aos montes. Mas esses são especiais. Quem um dia disse que não se perde por não jogar é um grande mentiroso. Aqui vemos a especialmente confusa e dolorida derrota dos paralisados; um tipo único de fracasso daqueles que cobram de si uma condição sobre-humana que são incapazes de realizar. Com isso, lá se vão os sonhos. E como falamos aqui de faltas, a pior das faltas é a linguagem. A ausência absoluta de uma forma de expressão que possa definir a clausura; e de uma linguagem capaz de imaginar também uma saída.
A verdade é que quem me furtou da vida foi meu próprio panteão. Uma espécie de estrutura heróica e autoritária que passou a exercer de cima para baixo uma força descomunal sobre o que eu deveria conquistar, querendo provar que tudo posso fazer e resolver. É quase uma piada. Ou REALMENTE uma piada. É daquelas coisas que se escreve pra depois rir. E talvez seja isso o que me faltou, a capacidade de me divertir diante da tragédia. Afinal, não existe nada mais engraçado do que se afogar em um balneário da sua própria linguagem.

